Texto inacabado



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Não é querer reviver e muito menos consertar qualquer coisa. É mais que isso; é concluir o que ficou inacabado. Desatar o laço e deixar a fita seguir livre por aí. Um beijo, um abraço, um olhar molhado, um segurar de mãos, um desprender de alma. Qualquer coisa que possa deixar-me livre para uma nova jornada. Na cabeceira de minha cama há pilhas de leituras incompletas. Não é somente querer, é necessidade de vida. Nada de peça faltando no tabuleiro sobre a mesa. O inacabado me sufoca.

Um dia desses, sonhei com você. A angústia me acordou no meio da noite. Levantei com a boca seca e o corpo cansado. Um copo d´água, um espreguiçar fazendo da pedra gelada da bancada da pia, barra de sustentação. Um suspiro profundo e uma porrada de recordações, não me deixaram dormir de novo.  A insônia é minha companheira desde sempre. Enquanto todos dormiam, eu ficava ali de olhos abertos olhando o nada, o negrume era o pano de fundo da minha imaginação. Meus olhos se fechavam com o cantar dos passarinhos.

Quando ouvia a voz de comando para acordar e levantar, porque estava na hora de ir para a escola era um sofrimento só. Sempre invejei aqueles que acordam falando, cantarolando como se a vida fosse uma eterna primavera. Sempre me assustei com aqueles que dormem com as galinhas. Personagem querido era o Drácula que vivia a noite e dormia o dia.

Mas ontem foi diferente, o sonho despertou-me para situações que eu ainda tinha que resolver. Abrir o baú e me desprender. É difícil, eu sei. Principalmente quando o que se está dentro é mais que tudo. Bicho alado não consegue voar em dia de chuva. E, certamente, temporais sempre existiram e existirão por aqui. Em dias alagados, o melhor para se fazer é ficar quieto olhando de cima. E a chuva não está dando trégua.

Não há culpado nesse meu caminho descontínuo. Mas se tem que haver um, então me faço presente. Os inacabados, mesmo os sufocantes, fazem parte da minha história. E se até hoje não os retornei para completar as falhas deixadas na minha linha de tempo, é porque o vazio também faz parte da minha paisagem. A discrepância também faz parte de mim.


Ainda não foi dessa vez. Não houve o beijo nem o abraço, muito menos o olhar molhado e o segurar de mãos. Olhei para a cabeceira e a pilha aumentou. O tabuleiro continua sobre a mesa e a alma, coitada, continua presa à espera da liberdade. A insônia continua sendo minha companheira; o negrume ainda é o pano de fundo da minha imaginação. Mas com uma diferença: hoje eu escrevo, mesmo que sejam textos inacabados. 

Passagem




O sereno que molhara a janela de madrugada se fora dando lugar a uma manhã brilhante e sonolenta de primavera. Virei meu corpo para a parede não querendo senti-la, cobri minha cabeça não querendo vê-la. Esqueci de tudo num sono profundo e silencioso.
As cores se misturaram em minha mente e o cinza cobriu-me a alma. O dia e seus coloridos permaneceram lá fora, como tinha que ser. Às vezes, não podemos mudar o que está fora e muito menos o que está dentro. Senti uma saudade incontrolável de você. Carência ou vontade de ter de novo as nossas conversas abertas sem censura e gargalhadas infinitas por qualquer motivo? Talvez as duas coisas e muito mais.
Geralmente, deixo para trás quase tudo. Raramente retorno a lugares e momentos. O que passou, passou.  Minha mente seleciona o que posso ou não guardar. E você foi coroada por fitas coloridas e miçangas douradas – É muito bom ter você comigo. Guardo-a em meu peito para sempre e como convém. E o bom de tudo isso, é que podemos estar juntos a qualquer momento. Basta querermos.
Essas coisas insanas de selecionar, de guardar, de querer, de poder e ¨otras cositas más¨, não são somente para pessoas e momentos bons. Também há ¨personae non gratae¨. Como esquecer uma ferida que deixou uma cicatriz dura e profunda?  Ela permanece na pele e na alma para lembrarmos dos perigos iminentes e termos a chance de nos proteger de uma nova ferida. Foi o que aconteceu com ela. Tudo aquilo que poderia ter ficado de bom foi enterrado quando a sua máscara caiu e a maldade emergiu de sua alma. Verdade! Tem gente de alma pequena. Vinicius escreveu que o ciúme é o perfume do amor. Caetano no funk melódico diz que ele é estrume. O que sei é que ele é foda! Desestabiliza as duas pontas. Uma hora  será colérico, fatal. Tudo acabado, mas não apagado. Tenho comigo as cicatrizes de uma ferida ocasionada numa tarde de verão.
A tarde que me fora de lembranças, agora míngua num tom cinzento dando passagem à noite marinha e brilhante. Viro-me à procura da lua. Dispo-me de tudo e banho-me de esperança de uma madrugada serenada, lenta e divertida. Digo:


- Boa noite para quem é de boa noite!