Passagem




O sereno que molhara a janela de madrugada se fora dando lugar a uma manhã brilhante e sonolenta de primavera. Virei meu corpo para a parede não querendo senti-la, cobri minha cabeça não querendo vê-la. Esqueci de tudo num sono profundo e silencioso.
As cores se misturaram em minha mente e o cinza cobriu-me a alma. O dia e seus coloridos permaneceram lá fora, como tinha que ser. Às vezes, não podemos mudar o que está fora e muito menos o que está dentro. Senti uma saudade incontrolável de você. Carência ou vontade de ter de novo as nossas conversas abertas sem censura e gargalhadas infinitas por qualquer motivo? Talvez as duas coisas e muito mais.
Geralmente, deixo para trás quase tudo. Raramente retorno a lugares e momentos. O que passou, passou.  Minha mente seleciona o que posso ou não guardar. E você foi coroada por fitas coloridas e miçangas douradas – É muito bom ter você comigo. Guardo-a em meu peito para sempre e como convém. E o bom de tudo isso, é que podemos estar juntos a qualquer momento. Basta querermos.
Essas coisas insanas de selecionar, de guardar, de querer, de poder e ¨otras cositas más¨, não são somente para pessoas e momentos bons. Também há ¨personae non gratae¨. Como esquecer uma ferida que deixou uma cicatriz dura e profunda?  Ela permanece na pele e na alma para lembrarmos dos perigos iminentes e termos a chance de nos proteger de uma nova ferida. Foi o que aconteceu com ela. Tudo aquilo que poderia ter ficado de bom foi enterrado quando a sua máscara caiu e a maldade emergiu de sua alma. Verdade! Tem gente de alma pequena. Vinicius escreveu que o ciúme é o perfume do amor. Caetano no funk melódico diz que ele é estrume. O que sei é que ele é foda! Desestabiliza as duas pontas. Uma hora  será colérico, fatal. Tudo acabado, mas não apagado. Tenho comigo as cicatrizes de uma ferida ocasionada numa tarde de verão.
A tarde que me fora de lembranças, agora míngua num tom cinzento dando passagem à noite marinha e brilhante. Viro-me à procura da lua. Dispo-me de tudo e banho-me de esperança de uma madrugada serenada, lenta e divertida. Digo:


- Boa noite para quem é de boa noite!

Emocional

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O vento que surgiu na minha varanda agitou tudo. Tremulou as coisas e arrepiou a alma. Carregou consigo as nuvens e os meus pensamentos. O céu se mostrou mais azul e meus olhos mais castanhos – talvez por ter levado a chuva para além da montanha e as lágrimas para outro lugar.

Ontem, não queria me levantar, um tipo de paralisia emocional. Estiquei as pernas ao máximo. A coluna seguiu meus braços longos e finos numa tentativa inútil de sair daquela posição protetora e infantil.  A fumaça engolida, inflava os meus pulmões e viajava pelas artérias em sonhos e ventania. Segurei na cauda do vento e deixei levar-me para além do halo que cerca meus olhos marrons. Gosto das figuras formadas nesse meu céu inventado. E quando tudo acaba, estou menos pesado e mais flexível. Mas nada disso conta se a pele que estou vestindo não suporta o frio invasor que insiste em visitar-me nas madrugadas embaçadas – volto ao denso líquido amniótico na esperança de libertar-me do imenso emaranhado existente. O sonho me é sagrado somente quando nele você está.

Às vezes, prefiro o sono silencioso, sem personagens e paisagens. Acordar sem a lembrança do ontem. Começar a vida quando os meus pés tocarem o piso de madeira do meu quarto.

Às vezes, prefiro levantar-me sem a certeza de nada. Seguir a vida levado pelo vento. Cobrir-me de nuvens e regar o chão por onde piso.

Às vezes, prefiro continuar no ninho, coberto pelas palhas soltas e protegido da incerteza do mundo. Ando meio cansado de tudo.

Às vezes, acordo querendo sentir o sol.  Olho para o céu na esperança de vê-lo. Mas se o dia está nublado e frio; aqueço meu corpo com uma taça de vinho, e a minha alma com a certeza de um dia melhor.


Hoje, acordei com os olhos brilhando depois de um longo sonho. Seria profano se nele você não estivesse.