Noturno



O meu céu sempre será da cor do metileno. Terá sempre brilhos estelares em signos. Não consigo ficar sem a vida noturna. Posso até acordar cedo, mas a noite é minha menina. É nela que piso em letras. Adoro observar os notívagos que vagueiam em destinos diversos em luzes artificiais. Não sei se a luz natural me cega, mas é com a luz artificial que mais enxergo.

A penumbra é de certa forma, o véu cor-de-chá da noiva romântica; o véu rendado da viúva negra; o véu vermelho que cobre a cabeleira da cigana. A penumbra é a claridade dos notívagos. É nela que surgem os personagens marginais de uma sociedade fascista.

É na penumbra que encontro carros em velocidade mínima, com faróis baixos, pneus quase arriados em desejos encubados; é na penumbra que o senhor distinto em seu terno, aperta a coxa da trabalhadora vadia; é na penumbra que duas mãos trocam interesses mútuos. É entre o claro e o escuro que a outra metade aparece.

Embaixo deste céu noturno, todas as bocas são vermelhas; todos os seios são duros; todas as pernas em saltos, ou não, são tortas. No azul de metileno, todas as cores são pardas, e todo gato tem seu peixe pra vender.

Neste céu insone, faço e refaço caminhos estrangeiros; colo panfletos em postes encarnados; quebro vidraças alheias; banho-me em chafariz iluminado por luz neon; piso em pétalas quebradiças; durmo em caixa de papelão; fumo pontas de cigarros perdidas no chão.

Neste céu de duas luas, encontro-me sempre numa encruzilhada romântica. Entre o bem e o mal, carrego sempre o meu pão embrulhado em papel de seda e, no meu terço de couro, tem cinquenta e cinco contas, cada uma numa cor.

O meu céu sempre será da cor do metileno. Terei sempre almas para destecer.



Paulo Francisco


Manhã






Eu já tive medo do escuro. Sim, morria de medo do escuro, ficava vendo coisas. Depois descobria que era uma roupa pendurada, um chapéu no espaldar da cadeira. Mas tinha uma coisa comigo: nunca disse a ninguém que tinha medo. Segurava sozinho. Menino não demonstra medo; menino não chora.

Absurdamente não chorava; absurdamente não declarava os meus medos – e eram tantos. Cresci e continuei achando que homem não podia chorar e nem tampouco sentir medos. Acabei numa paranóia que hoje chamamos de síndrome do pânico. Detalhe: tive que me curar sozinho. Sabe aquela coisa de que homem não chora, não pode ter medo? Pois é, foi com estes princípios que curei a minha paranóia. Custou. Custou-me anos de solidão, mesmo cercado de gente que me amava; custaram-me amores; custaram-me amizades. Custou-me a liberdade que tanto primava.  Então, resolvi que tinha que sair daquele buraco negro. Entretanto o que fazer, se não pedia ajuda a ninguém? Pois bem, resolvi tirar as garras do monstro de minhas entranhas, fazendo o inverso. Passei a frequentar lugares obscuros não por prazer e sim por desafio.

Conheci o outro lado da história e quase fui sugado por ela. Porém o que me curou mesmo foi ter admitido que sentia medo e que podia chorar sem culpa. Aí, a dor surgiu tão aguda que o meu próprio grito atingia o meu peito como farpa longa e pontiaguda. Aprendi a sofrer e gritar. Nunca mais escondi os meus sentimentos. Hoje já não sofro como antes. Sofro, sofro sim: por amor, por saudade, pelos outros. Sou feliz por amor e por lembranças. Hoje, sou tão normal quanto qualquer pessoa.  Sinto raiva, a indignação ainda me pertence e os medos são tão naturais que o meu choro deixou de ser miúdo para ser declarado Eu já tive medo do escuro.Hoje meus olhos clareiam qualquer caminho.



Paulo Francisco