Observador



















Aqui tem camaleão. Ando em trilhas amenas para ver planícies e pequenos montes. Adoro fazer caminhadas pequenas que não me estressam e que só me fazem bem. Nada de caminhadas longas, fatigantes. Não gosto de sofrer – gosto de ter prazer e não dor. Só faço trilhas na certeza de um final com vista tipo cartão postal. Se começo uma trilha e no meio do caminho percebo nuvens chumbadas, não insisto. Paro, espero e, caso as nuvens não sejam passageiras, eu retorno. Haverá dias melhores. Não vou arriscar a possibilidade da desilusão de ver o caos e não o belo.

Na minha última caminhada, encontrei muitas espécies de aves e de insetos. Cores diversas em flores e folhas. Nas pedras e troncos, répteis. Resolvi brincar de pesquisador e fiquei parado por um tempo observando com mais detalhes um camaleão, ou seria a fêmea do camaleão? Mas acabei descobrindo que era ele ou ela que estava me observando. Segui em frente.

Eu sou assim: prefiro observar a ser observado. Às vezes até deixo que pensem que estão me olhando, mas na verdade, sou eu quem os observa.

Quando estudante, numa reserva em uma região de Minas Gerais, observei uma família de primatas por um bom tempo. Enquanto os outros batiam o rio à procura de larvas de odonatas e efemerópteros, fiquei pra descansar e acabei tendo esta grata surpresa. Adorei ver aquela família tomando água na beira do rio e se divertindo – ganhei o dia.

Tem famílias que são tão lindas que eu fico a admirá-las por muito tempo.

Quando moleque, li na Seleções, que a loba alfa se passa por macho, fazendo um falso pênis de sebo, quando o chefe da matilha se ausenta. Tudo isto para preservar a sua família. Depois, descobri outras façanhas no reino animal.

Quantas mulheres não fazem o mesmo, para defender a prole ou lar?

Nós, humanos, mesmo com toda a civilidade, ainda carregamos comportamentos de uma vida selvagem.

Aqui em casa, por exemplo, tem o camaleão.

Ele muda de cor e de nome conforme a luz do céu.



Paulo Francisco
















Além dos seus cílios



Andava pelo meio-fio num equilíbrio invisível entre o limite da calçada e a rua de paralelepípedo. O vento, fabricado pelos carros velozes, empurrava meu corpo e meus pensamentos em todas as direções. Éramos leves. Com os meus braços abertos, equilibrava-me como um trapezista no arame sem a rede de proteção em busca de emoções. Viajava em silêncio num mundo circense.

Gostava de inventar.  Inventava e acreditava piamente no que inventava. Eu era um moleque ¨inventador¨ de histórias. Muitos não acreditavam nelas, as chamavam de mentiras. Fazer o quê? Se eles não tinham a alma leve e os seus olhos não alcançavam além de seus cílios. Os meus pinçavam nuvens, abanavam o vento.

Acordei numa manhã de domingo acreditando que estava apaixonado pela menina mais bonita da escola.  Invenção que durou todo o ano letivo em bilhetes apaixonados e anônimos jogados, na hora do intervalo, em sua pasta cor de rosa. Mas quando chegaram as férias a paixão passou a ser outra. Não tinha tempo para bilhetes e esperanças. Minhas mãos não mais desenhavam corações, elas construíam ilusões em varetas de bambu e papel de seda.  Tomava banho de sol em lajes alheias e em campos de futebol.

Talvez, eu tenha te inventado num final de tarde de verão, ou talvez, você se tenha inventado para mim num final de noite fria no mês de abril. Mas agora, nada disso importa, pois, nessa história inventada, a verdade se perpetuou às dezoito horas de um agosto agitado e quente. Voltaria a ser criança em brincadeiras e histórias inventadas.

Queria ser um moleque mergulhador, daqueles que andam com armaduras no fundo do mar. Pouco depois, troquei de ambiente, tirando o pesado escafandro dourado por um capacete supostamente mais leve -  transformei-me num  astronauta solitário, um feliz habitante lunar, um andarilho gravitacional. Acho que parei ali, na lua, e nunca mais voltei de lá.  Sou de lua, sou da lua, aluado e apaixonado pelo universo além do infinito. Sou companheiro de São Jorge e caço estrelas.

Escolhi, num dia de céu marinho e de lua cortada, uma estrela e a batizei com o nome dela.  Estrela companheira, estrela minha.

 Hoje, quando a saudade aperta até sufocar, inclino minha cabeça para trás, procurando-a no infinito azul, e quando a encontro, eu respiro longamente pelos meus olhos chorosos. Sou assim: um  ¨inventador¨ de técnicas que aliviam as  dores da saudade que porventura surgem por aqui. Saudade dói. Saudade é triste. Saudade mata, definha, maltrata, alucina. Saudade que traz felicidade, não é saudade, é lembrança. Ela chega é vai embora como a neblina matinal.

Quando ela vem me visitar escondida, meio gata, meio brisa, sem dizer-me um nada sequer, eu a pressinto na pele.  Meu coração sempre dispara quando algo está pra acontecer. Ele sempre acelera à sua presença. Mesmo que somente em meus pensamentos.


Ontem, voltei a ser um equilibrista sem sombrinha, um equilibrista de meios-fios de ruas pavimentadas por paralelepípedos ásperos e chorosos.  Equilibrei-me diante da vida. Fui para um lado, fui para o outro. Caminhei num vai e vem invisível, num vai e vem cadenciado por uma brisa morna e sedutora.

Ontem, voltei a ser um inventor de coisas improváveis. Inventei uma maneira de desconstruir coisas de pouco valor em poeira cósmica.  Ontem, inventei de ser mágico. Só os mágicos desaparecem com coisas impossíveis.




Paulo Francisco

Sonho meu


Sim, eu sei que a paisagem muda a cada instante visto.  Sentado em minha cadeira de palha, à sombra de minha varanda, percebo-te, percebo-me, percebo que estamos cada vez mais silenciosos. Estamos mais calados, mais monossilábicos.   Verdadeiramente estamos cada vez menos. Cadê o sorriso no olhar a cada encontro casual? Cadê a esticada de lábios, as pálpebras fechadas e o suspiro em uma fração de gozo, simplesmente por termos a certeza da presença do outro? Cadê!?

Estamos morrendo? Estamos desaparecendo a olhos vistos?  De certo que sim. Mas não agora. Agora, neste instante não, não estamos. Eu sinto que não.

Sim, a paisagem muda a cada segundo vivido.  Mas ainda vejo da minha varanda, a construção de sonhos.  Sinto a presença de Deus no voo dos pássaros.  De quando em vez Ele assopra em meus ouvidos sons divinos. Canções. Canções cantadas e tocadas por arcanjos. Você nunca os escutou? Ah, claro que sim... Foi você que me ensinou a ouvi-los.

Não vamos deixar que o tempo desgaste aquilo que preservamos por tanto tempo – a nossa cumplicidade. Sejamos cúmplices até a morte. Morte certa e ingrata.

Venha, senta aqui ao meu lado, observe comigo aquela construção. Veja como os pássaros passam velozmente próximos as nossas cabeças. Você viu que a roseira tem um novo botão? Nascerá certamente a rosa vermelha mais bonita de todas. Mais bonita que a rosa do Cartola, que a rosa do Vinicius ou a rosa do Chico. Sim, nascerá a rosa mais linda do mundo. Tão linda como o seu nome: Minha Rosa, minha Rosa querida.

Se sou um sonhador!? Claro que sou! Sonho sempre. Talvez eu morra sonhando. Morra pensando ser um passarinho.

Ah, deixa tudo por aí... Venha sentar-te perto de mim... Misture seus dedos aos meus. Acompanha a minha respiração; siga os meus olhos e perceba o movimento das nuvens. Abraça-me! Venha logo me abraçar bem apertado.

Não se queixe, os meus também estão brancos. Gosto de olhá-los e pensar que prateamos juntos; que enrugamos juntos; que fomos os descobridores de cada mancha em nossas costas.
Ah, meu amor não durma agora. Abra os olhos, veja-me. Sinta-me. Eu estou aqui, não irei há lugar nenhum.  Estarei sempre aqui perto de ti.

Hoje, os nossos não ligaram. Mas ontem também não... Qual foi a última vez que telefonaram? Tudo isso!? Devem estar ocupadíssimos com os meninos. Lembra como ficávamos quando eles eram pequenos... Só tínhamos tempo pra eles...

Você sabe quem são essas pessoas a nossa volta? Não reconheço nenhuma delas.  Engraçado, de repente a nossa casa se encheu de gente estranha... Quem é este que me segura pelo braço?

- Quem é você?

- Sou o seu enfermeiro Seu Carlos...

- Enfermeiro!? Não estou doente... Pra onde me leva? Deixe-me aqui com a minha esposa...

- Agora o senhor tem que voltar para o quarto... Os seus filhos já estão chegando...

- Meus filhos? Eu tenho filhos?

- Sim, eles chegarão logo...

Você sabia querida, que tive um sonho horrível. Acordei assustado. Sonhei que você já não estava mais aqui pertinho de mim... Bobagem, você nunca deixaria o seu velho, não é mesmo!?.Boa noite querida. Tenho que ir...


[Acordei todo suado. Corri ao espelho e repeti uma dúzia de vezes: Eu me chamo Paulo, Paulo!]






Paulo Francisco

Bicho-grilo





Na primavera os rios correm felizes. Disse a frase olhando para um pequeno rio enfeitado por pétalas coloridas.  A água seguia num fluxo cadenciado, fazendo dos gravetos e rochas os seus instrumentos musicais. O riachinho acompanhava o canto macio da mata, carregando folhas e pétalas coloridas que dançavam na sua superfície, enquanto que meus olhos brilhavam no reflexo da lâmina d´água.

Fiquei ali parado, ouvindo, tentando me integrar aquela diversidade de imagens e sons.  Deixando o vento levar o meu cheiro. Aceitando de olhos fechados, os vários cheiros que chegavam as minhas narinas.  Ainda de olhos fechados tentava reconhecer aquela mistura da natureza, mas quase não conseguia, pois o meu coração estava acelerado e a minha respiração estava intensa – ainda continuava com a cadência urbana, não tinha me despido por completo da poluição de todos os dias.

 Mais tarde segui a trilha acidentada identificando o passado: Os meus olhos seguiam o voo do capitão do mato com o seu azul brilhante e de outros lepidópteros não menos brilhantes; Eu tentava identificar os pássaros nas copas das árvores, meus olhos tentavam encontrar o inesperado, algo que transformasse o meu passeio num dia inesquecível. Ainda não tinha me dado conta que o passeio já era uma transformação, algo que eu não esqueceria e que meus olhos clicavam para dentro da minha alma.

Segui em frente. Sabia onde eu queria chegar. Já tinha traçado o meu caminho e, talvez por isso, a sensação enganosa do óbvio me entristecia. Mas não era bem assim. A cada passo, a cada movimento, uma paisagem viva enfeitava meus olhos e alegrava a minha alma. Eu estava enganado. Tudo era lindamente grande – um espetáculo único.

As teias de aranha rendavam algumas árvores e as folhas devoradas por hexápodes as transformavam em únicas com suas nervuras expostas. A arte natural criada por seres complexos e estranhos. O feio também tem mãos mágicas.

As formigas, o cupinzeiro, as vespas negras, os pequenos lagartos, as epífitas e seus inquilinos, o âmbar escorrido do caule, os cipós trançados, os cogumelos nos troncos apodrecidos, os raios de sol invadindo a tramas das copas das grandes árvores e chegando ao solo em tons suaves, faziam desse meu passeio, quase descompromissado, numa verdadeira obra de arte.

Meus passos estavam lentos, meus olhos e ouvidos estavam mais aguçados.  O bicho-pau estava lá entre os gravetos secos e a enorme esperança se confundia com as nervuras das folhas verdes. Entre a trama dos galhos, pequenos olhinhos castanhos me acompanhavam à distância – eram Micos curiosos, talvez mais de uma família - Já não estava mais sozinho em meu caminho.

Continuei no meu rumo traçado. Cheguei ao topo da montanha. Encontrei o inesperado. Olhei para o horizonte e vi a certeza da existência, a dualidade da vida desenhada numa tela gigante e abstrata.


Deus jogou as tintas e deixou que elas escorressem livremente por essa tela chamada mundo.


Paulo Francisco

Oscilante



Tudo que eu mais queria nos finais de tarde era a certeza de uma noite tranquila. Nem sempre elas foram cravejadas de estrelas, nem sempre havia lua em minha retina. Tudo era possível quando o que se tinha era a obscuridade da incerteza.

- Quando o seu pai chegar ele vai saber das suas travessuras de hoje!

Pronto, minha alma paralisava ao ouvir a ameaçadora frase. Ela ficava ecoando em minha cabeça, nocauteando minhas ideias e travessuras futuras. Esperava sempre o pior no final do dia.  Passava contar com a sorte. Nunca ganhei nada em nenhum tipo de jogo. Mas, às vezes, era agraciado pela piedade materna – ela fingia que tinha se esquecido de tudo. A minha noite voltava a ter brilho. E o ciclo se repetia: Acordava destemido e entardecia temeroso.

Cresci com as travessuras do dia e os medos no final de tarde e, a cada centímetro alcançado, novas categorias de travessuras e medos surgiam em minha vida. Envelheci sendo travesso; envelheci adquirindo novos medos, mesmo depois de ter parado de crescer.

Tinha medo o que causaria, em minha casa, uma nota vermelha em matemática. Depois, foi o medo da própria matemática da vida. Nunca soube calcular direito o outro. Fui reprovado muitas vezes nessa categoria.

Tinha medo dos caminhos incertos. Deparava-me com bifurcações sombrias sem nenhuma indicação por onde seguir – sofria antes de prosseguir. Depois, foi o medo de não haver mais tais encruzilhadas e tudo ser uma eterna e monótona caminhada monocromática. Sempre odiei o tédio, a rotina. Sempre procuro novos itinerários, novas paisagens, até mesmo a aridez do deserto.

Quando a conheci, tive medo da minha certeza de ser ela a mulher da minha vida. A certeza era minha e não dela. Destemido, segui em frente. Foi bom enquanto durou, mas foi terrível quando acabou. O ciclo continuava em minha vida.

Travessuras e medos amorosos fazem parte da vida? Da minha com certeza. Nada foi muito calmo, nada era pura magia. Um dia sim, outro não.

Certa época da vida eu enfrentei o terrível medo, atravessando uma lança afiada em seu peito, só para tê-la em meus braços. Achei que seria uma aventura de poucos dias, mas com o medo estendido no chão, derrotado pelas minhas mãos, continuei com aquela travessura por alguns anos. E deu no que deu: Num fim de tarde o medo ressuscitou-se e eu fugi pra nunca mais voltar.Destemido? Não, simplesmente irresponsável. Característica comum aos jovens tímidos e medrosos como eu. Fui à busca de noites mais tranquilas.

Encarava aquele flerte como uma coisa impossível e distante. Enganei-me ao pensar que a distância era o obstáculo pra nunca nos encontrarmos.Travessura de um peregrino à procura de uma flor rara. Ainda continuo procurando-a em jardins e pântanos, em dunas e montanhas. Hei de encontrá-la. 

Passam os dias, passam os meses, passam os anos, e tudo que eu mais quero e espero é a certeza de um final de tarde tranquilo e a esperança de que a noite esteja empolada de estrelas, mesmo que elas estejam somente no céu da minha boca.




Paulo Francisco

Mudez

As palavras não vêm. Quando muito, eu ficava na janela olhando a calçada em movimento. Era a chuva de verão no final de tarde. Era a chuva atrapalhando as brincadeiras de rua. Era a chuva me convidando a dançar. Hoje, o tempo promete. Há chuva no ar. E quando ela chega, transformo-a em chuva de estrelas; chuva de amor. Deixo-a lá fora salpicando os telhados e calçadas. Enquanto ela persiste, molho-me de beijos, cubro-me de carícias. Abro os braços para o amor. Abraço teu corpo. Enlaço-me a ti.

As palavras não vêm. Sou silêncio; sou refém. Quando há chuva lá fora, transformamo-nos em sóis. Somos luas; somos céus.

Quando a chuva chega, você é mais minha, sou mais teu. Meu silêncio branco se transforma em ondas azuis. Azul de teu mar; azul de teu céu.

Quando as palavras chegam, carregadas pelas chuvas, digo-lhe o que sinto em seu ouvido. Na timidez de minhas palavras falo o que queres ouvir: te amo.
É o que sinto.



Paulo Francisco

Banquete

Alimento-me de poemas. Não como uma refeição completa, mas como complemento alimentar. Tenho-os em minhas refeições diárias como o tempero necessário para garantir o sabor do meu dia.
Preciso do poema como o sol do dia, como a lua da noite. Necessito deles em meu corpo por dentro, navegando em minhas veias e artérias, atingindo todas as células de meu corpo.
Que seja Camões, Leminski ou Sant´anna - não importa de quem seja, desde que seja um poema bom, bom para o meu viver.
Respiro Neruda, Oswald, Drummond, Gullar, Vinicius. Preciso hidratar meu corpo com os sais encontrados nos versos de Cora, Cecília e Florbela.
Sim, alimento-me de versos construídos, trituro-os com os meus molares, e enzimas encontrados à minha saliva, degrado-os, amasso-os, degusto-os, transformo-os num bolo poético e degluto-os lenta e suavemente, sinto-os invadindo minhas entranhas, chegando como manto e cobrindo minha alma.
Alimento-me de poemas, sinto-os na ponta de minha língua.
[E quando estou te amando, te faço poesia.]


Paulo Francisco



No fundo da gaveta




Menos é mais. Liguei para uma amiga e ela estava arrumando o seu guarda-roupa. Quando falei que organizo a minha mente quando arrumo o meu quarto, ela me respondeu que só estava dando um jeito na bagunça provocada, pois já tinha doado e trocado muita coisa durante a semana e que estava tudo bem com ela e com ele – o quarto.

 Descobrimos que não nos apegamos a roupas ou a qualquer outra coisa material. Doamos muito. Constatei também que é normal as mulheres trocarem roupas e bijuterias entre elas. Homem não troca nada, ou ele doa ou ele joga fora.  Homens que vivem sozinhos aproveitam as camisetas velhas para pano de chão, mas só depois, é claro, de usarem as surradinhas como pijama.

Sou minimalista. Atento-me para detalhes, mas odeio excesso. Talvez não quando escrevo, mas na vida certamente. Olhei ao redor e percebi que à minha casa é diferente daquelas que visito, tem poucas peças, sem frescura, é quase básica. Há algumas obras nas paredes ou no canto da sala, mas não encontrei nenhuma referência de minha infância agitada ou de minha família distante. Nenhuma lembrançinha de viagem, nada que me remetesse a algo em particular. Guardo as lembranças boas dentro - no coração. Visto minha alma com cartões postais da vida. Sou retalhos de lembranças costuradas à mão. Minha saudade é de aeroporto, minha esperança é de quem chega e a tristeza é de quem parte sem saber se um dia voltará. Sigo sem olhar para trás, caso contrário, acabo não indo. Lágrima me paralisa. Lágrima me enfraquece - ela é a minha Kriptonita. Torno-me fraco e incapaz. Então não chore, sorria sempre.

Retorno a minha história em passos lentos, em viagens finitas, com olhares calmos, sem brilhos lacrimejantes, sem suspiros de arrependimentos, sem vontade de ficar. Sigo em frente naturalmente.  Viajo nu e, nu, permaneço até o ponto de chegada.

Faz parte de minha natureza ter o mínimo necessário. Sou feliz com o que tenho.  Não me imagino um acumulador de coisas. Jogo fora antes mesmo de obtê-las. Olho para algo e penso num segundo em comprá-lo, mas no segundo seguinte já o descarto de minha vontade. Desse jeito vou ficando leve, dando passos largos, chegando mais rápido, levando a vida.

Estava doido de vontade de vê-la, queria tê-la logo. Estava ansioso, um adolescente na sua primeira transa: as pernas tremiam, os músculos  de meu corpo todo estavam enrijecidos, o suor frio escorria pela camisa e a boca seca gritava por saliva.

Não a descartaria jamais, guardá-la-ia por todo o sempre. De certo, faria um poema todas as manhãs antes do café e deixá-lo-ia na bandeja, debaixo do guardanapo de linho. Gosto, gosto muito de provocar surpresas boas. Mas não foi assim que aconteceu. A banda destoou, desafinou no coreto da praça. A tuba engasgou e o surdo rompeu. Oposto a mim, ela era uma acumuladora. Acumulava desesperanças, acumulava desgostos, acumulava brigas, acumulava desconfianças. Ela se excedia nos movimentos, não percebia os detalhes. Causou-me estranheza tamanha disritmia.

Tentei seguir em frente, numa tentativa inútil e teimosa. Mas quando disse que na minha vida, menos é mais, ela não entendeu a frase ou, possivelmente, não era o que queria ouvir e acabei tornando-me mais um em sua coleção de coisas descartáveis.

Juntei-a com as outras más lembranças guardadas numa gaveta obscura escondida num quarto sombrio e frio. Mas a qualquer hora terei que esvaziá-la. Afinal, eu insisto em dizer:

 - Menos é sempre mais em minha vida.


Paulo Francisco





Idas e vindas





Eu não tinha certeza da vida. Não sabia o que viria no amanhã, tentava esquecer o ontem e lutava contra o hoje. O que  tinha feito pra viver daquele jeito,  não sabia e se sabia, não queria pensar nem tampouco voltar atrás de uma decisão que achava certa. Eu tinha a idade da teimosia.
Minha vida era comum, como a vida de qualquer outra pessoa naquele meio – eu era só mais um diante do cinza. Mas tinha fome, tinha sede, tinha medo e os outros não.  Não entendia. Gritava pra Deus como se Ele fosse culpado da mazela invadida – a culpa não era Dele, era somente minha.
O menino parou-me quando estava pra entrar no mercado pra comprar vinhos.
- Moço, paga um salgadinho?
- Pode ser um biscoito?
- O senhor compra também um iogurte?
- Claro! Qual?
O moleque entrou conosco (Valéria Soares estava comigo) e escolheu o biscoito e o iogurte sabor morango.
O menino não estava com fome de comida, ele estava com fome daquilo que não podia ter no seu dia-a-dia.
Ao sair do mercado, ele esperava ansioso. Com ele, estava outro moleque; pareciam irmãos.  Repartiriam, com certeza, o desejo adquirido.
Eu andava pelo Centro do Rio e tremia quando meus olhos invadiam aqueles pratos expostos na mesa de quem podia comê-los. Eu tinha fome e ninguém sabia.
O vendedor de flores que caminhava na madrugada de restaurante em restaurante, sempre parava na minha mesa:
- Moço, uma rosa pra namorada?
Olhava pra minha mulher e sorria:
- Tudo bem, eu quero essa!
A rosa ficava ali em nossa companhia e seguia conosco até a nossa cama.
Quando percebeu que eu não tinha o que comer, o camarada passou a dar-me a sua comida, e comer na rua, com a desculpa de que não gostava muito do que tinha ali, e preferia um hambúrguer com refrigerante. Ele alimentava o meu orgulho faminto. Ele sabia que a minha fome era por teimosia de um moleque bicudo que não queria voltar pra casa – Eu fugira de todos e de tudo. Rebeldia necessária como lição de vida.
Anos depois, eu caminhava em São Cristóvão, indo trabalhar, quando escuto uma buzina. Era ele, em seu carro:
- Lembra de mim?
- Como eu poderia te esquecer!
- O que faz por aqui, camarada?
- Trabalho aqui, eu faço ...
- Bacana!
-  Sempre me lembro daqueles dias...
- Eu também!
O sinal abriu, ele partiu sorrindo e, eu, ali paralisado, não disse a ele: obrigado.
Eu não tenho certeza da vida. Não sei o que virá amanhã, tento lembrar-me do ontem e vivo o hoje na intensidade permitida. O que fiz pra viver desse jeito? Talvez tenha sido o orvalho em minha cabeça nas noites frias, a dor na sola de meus pés em caminhos pedregosos, a acidez na garganta de um estômago vazio, a cegueira temporária numa adolescência agitada, as pernas paralisadas de um medo existente. Ou talvez tenham sido as mãos amigas por aí afora ou, quem sabe, tudo isto junto e um pouquinho mais.
Minha vida é comum como a de qualquer mortal e tenho ainda a fome, a sede e o medo. Tenho a fome de vida, a sede de amar e o medo de não conseguir.
Hoje falo com Ele, com a certeza de uma vida vivida – Só com Deus eu falo, nunca com o diabo... Por mais que ele insista.




Paulo Francisco

Na beira do mar



O mar gritava poesia, estava agitado como um poema apaixonado. Eu estava ali deitado na areia, olhando as estrelas, curtindo a lua cheia. A brisa se jogava ao mar, empurrando as jangadas em direção ao infinito. Lembrei-me de minha casa, não a da praia, mas a da montanha, onde namoro o céu de minha rede. Gosto de estar assim, jogado, largado, longe das amarras do dia-a-dia.  Gosto desta vida vagabunda temporária em que não tenho hora pra nada, que não tem futuro nem passado, somente o imediato.
- O que você vai ser quando crescer? Sempre me perguntavam e eu nunca soube responder de verdade.
- O que você está pensando? Sempre respondia que não estava pensando em nada e, verdadeiramente, não estava pensando em nada que pudesse interessar a quem estava perguntando.
- O que você vai fazer amanhã? Não sei, dizia, ainda não dormi.
Sempre achei chato responder pergunta investigativa. Nunca gostei de falar sobre o que pretendia fazer. Até porque nunca soube o que realmente faria no dia seguinte.
Ela veio me fazendo tantas perguntas que acabou perdendo o encanto. Sempre achei que devíamos nos descobrir aos poucos, devagarzinho, sem pressa, como a água descobrindo um novo caminho e fazendo um novo rio.
Lá estava eu sendo obrigado a responder pra não ser grosseiro. A cada resposta, menos um ponto. Nem mesmo a minha recusa fez com que ela parasse de perguntar. Ela interessada em saber, eu desinteressado em dizer.
A brisa nos levou pra casa - ela para a cidade, eu, para as montanhas.
 Já era de manhãzinha quando resolvo voltar. Estava só, ninguém me vira saindo. Também, ninguém me viu voltando. Dormi com o cheiro do mar.





Paulo Francisco

A intrusa




Ela era feia, muito feia. Tinha as bochechas caídas, boca grande, pernas finas e, para completar, era amarela.  Apesar de sua feiúra, não me assustei. Mas confesso que foi difícil encará-la de imediato.

Ao voltar pra cama fiquei pensando o que fazer com aquela visita indesejada. Não sabia se a pegava com as mãos e, delicadamente, colocava-a pra fora, ou, simplesmente, deixava a bochechuda invasora parada, olhando o nada, até se cansar da monotonia daquele ambiente.

Resolvi, então, dividir o meu espaço com a feiosa por mais um dia, desde que não invadisse a minha cama, tudo bem.

Impossível compartilhar os meus sonhos com uma pecilotérmica – tenho sangue quente e gosto de dormir encolhido e agarradinho. Confesso: já dormi com algumas cachorras em minha vida, mas, elas eram fofinhas e quentinhas.

Geralmente, não tenho repulsa a nada, mas era impossível não sentir nojo daquela olhuda de boca larga. Ela era grande, esquisita e quase albina.

Ao amanhecer, antes mesmo de ir à cozinha preparar o meu café, fui verificar se a invasora continuava  dormindo ou se tinha resolvido voltar de onde veio. Tristeza... ela não moveu um milímetro sequer da posição que eu deixara à noite anterior.

Após uma boa caneca de café preto e quente, deitado em minha rede, tive a brilhante ideia de transferi-la daquele lugar para a varanda da minha casa. Deixei-a num vaso de planta. Ela aceitou a nova moradia sem mover um músculo – além de feia, era preguiçosa.

Tudo em paz; estávamos felizes: eu na rede, lendo sobre ela, tentando descobrir seu nome e, a feia, na planta, olhando-me sem entender nada.

Sou assim mesmo, não gosto de visitas repentinas, mas também, não sei dizer não para aquelas que me pedem abrigo.

No meio da leitura sobre aquele ser gelado que invadiu o meu espaço, a campainha tocou:

-Surpresa!!!!

- Não acredito, por que não me ligou?

- Estava passando de carro e tentei arriscar...

- Que bom! Estava lendo um livro cientifico.. e ...

- Passei para um saber como tá tudo... você não atende as minhas ligações...

- Eu estava viajando, retornei ontem.

Ela chegou sorrindo, transformando minha manhã de inverno em primavera.

Gosto de sua alegria e de seu jeito solto de invadir a minha casa.

Em meu espaço, reservo sempre um cantinho em minha rede. Ela pode se balançar e até sonhar.  ¨Mi casa, su casa.¨

Depois de incensar toda a casa, deixando-a com cheiro de pomar, resolvemos ouvir umas músicas indianas, que ela encontrou em minha coleção de CD; viajamos um bocado, cada um na sua – ela na rede e eu no sofá da sala tentando continuar com aquela leitura científica. Acabei cochilando de tão agradável estava àquele ambiente incensado por ela.

De repente um grito e um susto. Pulei do sofá e a vi, parada, amarela, com os olhos arregalados, a boca esticada, os braços duros e abertos para baixo, totalmente paralisada. Cai na gargalhada da barriga doer. Ela ali, sem mover um milímetro sequer e a perereca albina encarando-a agarrada às cordas da rede. A bicha era grande e feia.

Apresentei-a a minha mais nova visitante e, claro, fui obrigado transportá-la além de meu portão.

Não gosto disso: - ¨Ou ela ou eu? ¨ Mas, fazer o quê, quando quem diz é quem sabe melhor mandar.
Certamente, não terei mais aquela de boca grande em minha varanda. Como já disse, tenho o sangue quente e adoro dormir agarradinho. Mas, com a visitante certa, é claro!




Paulo Francisco


















Motivo

Eu poderia ter nascido pedra, mas Deus me quis assim: homem. E como homem,  tento fazer a minha parte neste mundo que não é meu. Sim, o mundo não é nosso - engana-se aquele que pensa que é. O mundo é muito mais dos outros que por aqui habitam; eles chegaram, nesta Terra primeiro – É fato, não vamos discordar. Seres tão inferiores segundo nós e tão mais fortes, segundo Deus. O homem não é o Rei do mundo, ele é um visitante com hora marcada de chegada e partida. Sua casa é em outro lugar. Assim espero.

Eu poderia ter nascido Pedro, mas minha mãe me quis Paulo, Paulo Francisco. E com o meu nome,  vou me levando por aí, às vezes em pisadas firmes, como as do guerreiro em marcha ao campo de batalha; outras vezes, com andar cambaleante como a do bêbado ao voltar pra casa.  Mas do que eu gosto mesmo, é de navegar em ares quentes, totalmente desnudo de tudo. Sem uma marca sequer que venha me lembrar de outros caminhos que não seja aquele por onde ainda terei de chegar.

Espere por mim, estarei chegando depois daquela nuvem com formato de coração – basta atravessá-la para alcançar o seu. Enquanto isso, cê vai ouvindo o meu ribombar cada vez mais alto, avisando ao mundo que, um dia, serei teu.

Eu poderia, simplesmente, não ter nascido, ter ficado na esperança de um ventre seco, ou varrido do útero antes do tempo. Mas não foi o que aconteceu - Nasci e estou aqui pra te amar cada vez mais.

Nasço a cada manhã surgida, navego em raios refletidos e sigo com eles, o caminho da vida. Nasço a cada palavra tua e escrevo o meu nome junto ao teu. Somos nós.

Vivo em esperanças traçadas e tento com as minhas mãos alcançá-las. E alcançá-la-ei, eu sei.

Pego as mais longínquas imagens e faço delas as minhas companheiras de sonhos doces em brincadeiras de crianças.

Éramos infantes sem coroa, numa terra encantada de meninos e meninas que brincavam num habitat de flores e frutos. Caminhávamos de flor em flor, como os beija-flores, à procura do néctar ainda não bebido; carregávamos os frutos nas mãos, como os pássaros as carregam em seus bicos. Éramos dispersores naturais, semeadores de futuros e, naturalmente, habitantes de um mundo onde a certeza era somente o brincar.

Na passagem do tempo, do meu tempo, não fui aquele infante que muitos queriam – Lamento, sou um só!

Fardei-me com outras divisas, marchei em outra direção, lutei com armas invisíveis e abati centenas de algozes que em mim habitavam. Fui um infante à frente da batalha. Carreguei a bandeira da vida e sobrevivi com ela em meu coração. Coração que retumba amor. Retumba sim! Retumba.

Hoje, dispo-me das armaduras pesadas e caminho entre nuvens. Faço uma nova estrada – tenho a direção. Fardo-me com flores em meu peito, cerro em minhas mãos os meus desejos e caminho junto ao vento em visitas clandestinas. Tomo banho de chuva, aqueço-me ao sol, deito-me na relva à espera do surgimento da lua. Choro, rio, sem medo, sem vergonha de ser romântico.

Eu poderia ter nascido morto, mas Ele me quis vivo.

Vida! ? Foi Deus quem me deu. Se não está satisfeito com a minha, reclame com Ele. Mas antes de fazê-lo pense primeiro qual foi o objetivo Dele ao conceber a tua.

Eu poderia ter nascido pássaro, mas Deus me quis assim: Gente!



Paulo Francisco

Em cores

Eu estava sempre rabiscando algo. Adorava desenhar o que vinha em minha cabeça. Gostava, também, de misturar as cores e descobri-las em manchas pingadas nas sobras de papel de pão. Não fazia pipa monocromática – todas eram coloridas e assinadas por mim.

Mais tarde, descobri as manchas em camisetas brancas, tingia em panelas emprestadas da cozinha de casa – sobre protestos, claro, de todos. Eles protestavam, eu abstraía.

Depois, descobri o pôr-do-sol, as cores psicodélicas e o vermelho intenso. Nunca gostei muito do verde oliva, mas curtia os outros verdes, naturalmente.

Quando o meu filho nasceu,  emprestei-lhe a minha cor preferida – o azul. Mesmo ele ficando lindo de vermelho, era com o azul que eu vestia sua alma.

Quando a vi de preto, achei-a uma mulher interessante, mas foi com um vestido azul da Pérsia que a notei e me apaixonei – nunca me esqueci daquela cena: ela no alto da escada e eu parado no primeiro degrau, olhando para suas pernas cobertas por meias-finas pretas. Mas foi o azul, aquele azul da Pérsia, que me hipnotizou. Não resisti e fiquei preso àquela imagem por muito tempo.

Imagens? Tenho algumas cravadas em meu coração.Umas guardadas com carinho, outras que insistem em ficar mesmo eu as dando ordem de despejo – são imagens teimosas e inconvenientes que invadiram meu espaço e criam fantasmas para me assustar.

Levei um susto quando a vi pela primeira vez. Ela não era o que eu imaginara. Mas insisti em tê-la para sabê-la em cores. Mesmo ela apresentando, externamente, uma casca quitinosa e quebradiça, acreditava na possibilidade de possíveis matizes. Péssima ideia. Suas cores não passavam do amarelo da palha seca, guardada para dias escassos.

Sempre pensei que os loucos fossem coloridos, mas se são, ela, então, era a exceção. Nunca fiquei tão perto da esquizofrenia como naquele curto espaço de tempo de convívio – quase enlouqueci também. Escapei por pouco.

Não me transforme no que eu não quero ser.

Quando meu pai descobriu que o meu time de futebol não era o mesmo que o dele, correu até a loja e comprou uma camisa de seu time, acreditando que eu mudaria o que em mim já estava determinado. O que ele conseguiu foi adiantar sentimentos que eu deveria descobrir bem mais tarde em minha vida. Seu desespero, minha felicidade.

Não me tragam flores quando os meus pés estão cobertos de espinhos.

Como eu teria que ser naquele instante pra que ela gostasse de mim? Sempre achava que tinha que ser diferente do que era pra agradar a quem eu amava. Colecionei decepções na lapela de meu surrado paletó. Demorei pra aprender que não tinha que vestir o que não me cabia.

Não queira me cobrir quando a nudez é a minha melhor roupa.

Até hoje rabisco o que vem em minha cabeça. Meus desenhos pontilhados registram imagens macroscópicas que meus olhos só alcançam através da lente do mundo.

Ainda não desenhei o meu autorretrato – falta-me pontilhar alguns caminhos.




Paulo Francisco

Relação

Você me tira do eixo! Ela disse a frase e bateu a porta.
Eu fiquei ali, olhando a barreira de madeira, pensando no que fazer para contornar aquela situação. Pensei: ¨ Eu a tiro do eixo! ¨
Como uma pessoa pode sair tão rápido do seu centro por causa de uma frase ou de uma palavra? Às vezes, o melhor é concordar e pronto. Tudo fica calmo, tão calmo que a monotonia invade.
Não, gosto de ventanias, de chuvas torrenciais.
Gosto da angústia da espera, mesmo na certeza da chegada.
Gosto do café bem quente, pra poder assoprar antes de sorvê-lo
Gosto do segredo, do secreto, mesmo que todos já saibam
Como eu a tiro do seu eixo? Como eu consigo descentralizá-la? Se eu disser que a amo, pronto, ela enruga a testa e fica me analisando, porque eu disse aquilo, àquela hora, sem mais e sem menos. Passa o dia todo, olhando-me desconfiada, enviesada; se passo batido uma data comemorativa, greve de dias; se digo que estou cansado, a casa cai.
Se não elogio o seu cabelo novo quase que semanal, eu não me importo; mas se elogio, lá vem a frase: o que está acontecendo?, você não é disso!; Se mando flores, recebe desconfiada, se não mando, não sou romântico. Se telefono no meio do expediente, pergunta onde estou, se fico sem ligar, não me importo mais.
Às vezes o melhor é concordar e pronto. Mas como eu já disse a monotonia invade. Praia sem ondas é banheira; céu sem estrelas é buraco negro. Eu sem ela, primavera sem flores.
"Você me tira do eixo!" Ela disse a frase e bateu a porta.
Eu estou aqui, olhando a barreira de madeira, pensando quando ela vai voltar, para eu entregar o seu presente de aniversário.
E tudo isto aconteceu porque fingi não me lembrar da data.
Mas o que seria desta comemoração, sem um pedido de perdão? Dela é claro!!!



Paulo Francisco
¨

Eis a questão

O que faço com esta sensação de perda? Já perdi tanto nesta vida. Já entrei em coma e ressuscitei - me tantas vezes que perdi a conta. Deixei de ver o nascer da primavera; de ter os arrepios de um inverno rigoroso. O que eu faço quando a solução não está em minhas mãos? Visto o meu terno cinza e vejo o meu túmulo em mármore?

O que faço com este movimento interno que me tira do prumo? Equilibro-me? Envergo-me?

Não sei...

As linhas de minhas mãos ainda estão fortes. Meu caminho ainda tem algumas paradas. Tenho que continuar minha viagem, mesmo sabendo que a volta é sempre para o mesmo lugar. E esta sensação de peito rompido? E este barulho repetitivo de asas de odonata presa em minha cabeça? Se cubro os ouvidos, um zumbido aparece ecoando em minha cabeça; se cruzo os braços, na esperança de colar a pele rompida, eles ficam presos e não querem mais voltar a se movimentar.

Quero de volta a sensação de paz que me rodeava e eu nem ligava. Quero a sensação do frescor de um sorriso vermelho, mesmo que me mordesse de vez em quando.

Quero a pele humana me esquentando nas madrugadas de zero grau. Quero ser guiado por pensamentos lascivos. Acordar de um pesadelo e ter ao lado quem me diga: ¨ durma de Novo!¨
O que fazer quando seu corpo grita em silêncio por perdão?

Não sei...

Termino este texto sem saber o que fazer pra voltar pro meu quarto, depois de ter sido expulso de minha cama, simplesmente porque ri de seus cremes.

Tudo bem! Adoro meu sofá.


Paulo Francisco

Além de meus olhos

O que não era meu, aos meus olhos parava. Olhava admirado o que não estava ao meu alcance; achava lindas as cores vivas das outras casas e que na minha ainda não tinha sido pintada pelas mãos de quem cabia. O branco é bonito, mas sempre preferi o azul.

Namorava pela grade, do lado de fora, os jardins das casas bonitas de dois andares existentes em minha rua – chamavam-nas, na época, de ¨duplex¨. ¨Os ricos moram lᨠdizíamos sorrindo e já correndo depois de tocar clandestinamente as sua campainhas.

O meu melhor amigo tinha uma casa simples. O meu segundo melhor amigo tinha uma casa simples. O meu terceiro melhor amigo tinha uma casa simples. O vigésimo quinto melhor amigo tinha uma casa simples. Eu morava numa casa simples – uma casa ¨simplex¨. As nossas campainhas não eram tocadas e sim gritadas pelo nome de quem queríamos falar.

Nunca soube como era ser um menino morador de uma casa de dois andares e com um imenso jardim à sua frente – eles não se misturavam com gente como a gente. Olhavam-nos por cima, sentados em suas sacadas e varandas enfeitadas.

As nossas sacadas eram as mangueiras, goiabeiras, caramboleiras e tantas outras. Avistávamos o horizonte comendo os frutos da época. Lambuzávamo-nos em sonhos escorridos.

Éramos um bando de pés cascorentos  e de bocas sujas que vadiavam pelas ruas e campos, com sacos de bolas-de-gudes, pipas ou pião de madeira, dependendo da ordem do dia. O vento era o nosso caminho.

Não tínhamos os melhores sapatos, nem precisávamos, tínhamos asas em nossos pés que nos levavam para junto dos pássaros; não tínhamos as melhores roupas, nem precisávamos, tínhamos os nossos peitos nus para amparar o vento e refletir o sol.

Não nos protegíamos da chuva em varandas enfeitadas com mesas e cadeiras de ferro pintado de branco; éramos os próprios pingos respingando o mundo – éramos a sua chuva de todos os dias em seus caminhos secos e sombrios.

O menino branquinho, impecavelmente vestido, ficava nos olhando pela grade de seu portão; a menina de cabelos cacheados, na sacada de seu quarto, nos olhava assustada, com sua boneca enfeitada em suas mãos; no interior da sala, um casal de frente para a televisão – Família perfeita, nenhuma confusão.

O que não era meu, a minha alma pertencia. Desejava intimamente as cores do mundo.

Calava-me diante da incerteza e sorria com o que restava perante meus olhos. O sorriso é o melhor remédio para as dores embutidas.  Resguardava em silêncio o que desejava em sonhos.

Éramos construtores de sonhos e reciclávamos os nossos dias – transformávamos o nada em tudo.  E tudo era divino e maravilhoso como o chocolate comprado aos domingos.

Sempre que passava pela rua enfeitada de casas bonitas, eu sorria para aquele garoto branquinho que me observava atrás das grades do portão -  ele retribuía-me com um tímido aceno.

Estava indo para o meu compromisso de domingo. Ele, eu não sabia o que fazia às tardes dominicais. Nunca o vi no cinema, nunca o vi no circo, ou brincando com um amigo sequer.

Talvez ele fosse uma criação; uma coisa imaginada, parada, aos meus olhos de menino.



Paulo Francisco

Tudo ou nada a ver

Um dia desses, estava esperando o ônibus, encostado à parede, lendo um livro, quando percebi que todos que ali estavam tinham a mesma cara – de tédio.

Ninguém gosta de esperar. A espécie é aflita. Todos querem chegar logo ao seu destino, seja ele seu lar, sua escola ou trabalho. Não importa se o destino é agradável ou não. O mais importante é chegar, chegar logo. O homem não gosta de ficar parado; ele não pode ficar parado – ele se desequilibra e cai.

Na vida temos que chegar a algum lugar.

Quando é domingo eu quero que chegue logo a sexta. Mas como não é possível pularmos de um dia para o outro. Eu faço de cada dia o meu domingo.

Vivo a minha manhã sem pensar na tarde. A minha tarde é inteiramente exclusiva, nada de pensar na noite. Mas quando sou coberto por estrelas, não penso em mais nada a não ser em vivê-la intensamente. Não, não preciso estar acompanhado, às vezes minha companhia me basta. Gosto de estar comigo mesmo. Não sofro de consciência pesada. Faria Yoga tranquilamente se não fosse tão preguiçoso. Adoro pensar e recordar tempos passados, sem o tão mal falado saudosismo. Lembro-me de que:

Numa dessas noites de pseudodomingo, quando esperava uma amiga, me peguei com cara de tédio, parado, quase caindo.

Estava totalmente distraído quando, do outro lado da calçada, passou tão bela quanto antes, uma feiticeira. Não, não estava bêbado, não tinha fumado nada fora da validade, era ela, a feiticeira do meu coração.
Feiticeira que me deixou esperando sem nenhum aparato para recostar-me.

Feiticeira que hipnotizou minha alma e fez dela sua serva.

Feiticeira que transformou meus sentimentos em um só – angústia.

Feiticeira que depois que usou jogou fora.

Mas como já disse, a espécie humana não sabe esperar. Mais uma vez a feiticeira me hipnotizou, deixando-me paralisado, grudado naquela parede branca. Coração acelerado e boca seca. Tentei gritar seu nome mais a voz fora guardada num pote mágico.

Ali, preso a brancura existente, totalmente atônito, vi quando a bela feiticeira seguiu em sua vassoura céu adentro. Juro que vi.

A moça chegou um pouquinho depois do acontecido, salvando-me daquele feitiço. Sorri, peguei-a pela cintura e fomos para a nossa festa à fantasia – era a minha primeira festa à fantasia na casa de um amigo.

Ela estava vestida de fada e, como era de se esperar, eu estava vestido de prisioneiro.


Paulo Francisco

Passatempo


Enquanto eles não chegam, eu fico aqui entre uma palavra e outra.  Esperava ansioso a chegada de meus amigos em minha casa. Eu era um anfitrião-mirim dos mais agitados em dias de chuva. Se a rua estava molhada, escolhíamos a casa de um de nós, para dela se transformar em nosso quintal. ¨- Melhor assim! ¨  Diziam elas comparando as ruas com a segurança do lar.

Mas o que eu gostava mesmo, era de ficar na chuva e fazê-la minha companheira. Por que parar a pelada se a chuva era passageira, e se já estávamos de corpos nus? Por que deixar de ir ao parque se o sol vem logo depois? A chuva nunca fora motivo para desistirmos de nada. Já tomaste banho de mar com os pingos da chuva de verão em sua cabeça? Eu já. E é muito bom.

Ela não quis molhar os cabelos – não queria ficar comum depois de horas no cabeleireiro. Uma pena, por que o que eu queria mesmo era chuva de chuveiro e corpos molhados e trêmulos em gozos quentes – era tempo de amar e não de esnobar.

Enquanto os meus amigos não chegam, eu vou escrevendo uma coisa e outra nesta tela branca do computador. É o que me resta neste tempo ocioso.

Adorava rabiscar em guardanapos enquanto conversávamos. Ficava ali ensimesmado em meus desenhos psicodélicos. Éramos abstratos demais, não conseguíamos concretizar nada juntos. Num segundo tudo mudava, saíamos de uma alegria plena para um obscurecer profundo. 

Era tudo muito doido e doído. Uma loucura desejada e uma pseudorealidade pretendida. Tudo era ilusão. Tudo era muito confuso, tínhamos sonhos divergentes.  Caminhos contrários a serem percorridos. Juntos, nos tornávamos heterogêneos. Éramos estradas paralelas com vontade de cruzar. 

Nosso único sentido era o que um poderia dar ao outro naquele momento: o capital e a mercadoria.

Mas o que eu queria mesmo era estar com os pés no chão para poder viajar, viajar de verdade, com mochilas nas costas e grana no bolso, mesmo sendo pouca.  Estava ficando chato aquele ir e vir em viagens insólitas.

Talvez eu faça uma pequena viagem na próxima semana, uns dez dias fora das montanhas – talvez eu veja o mar, ou os mares, ainda não sei. Não gosto de sair de casa em feriados prolongados. Fica tudo tão confuso. Perdem-se muito tempo em estradas, filas de mercados e restaurantes. Prefiro as semanas comuns para tais passeios. Em feriados eu fico em casa. Prefiro a minha rede na varanda e o meu céu azul. Gosto de minha casa e o que ela representa – Paz.  Paz que conquistei aos poucos, depois de muitas batalhas internas. Finquei o mastro em meu quintal e curto hoje o tremular da bandeira branca.

Barraco? Confusão? Discussões intermináveis? Nem pensar.  Tudo bem de uma discussãozinha de quando em vez para apimentar o clima, mas não mais que uma pequena discussão. Nada de cara amarrada, virar pro lado, ficar de mal. No máximo um beicinho pra eu desmanchar em sorrisos.

Confesso que gostava dos seus beicinhos; ela ficava igualzinha as menininhas birrentas e patricinhas. Desmanchava rapidinho, aquela cara-fechada em sorrisos reluzentes.

Esta ficando chato e esquisito, eu aqui, sentado, tomando água mineral e escrevendo nesta máquina. O garçom já me perguntou duas vezes se quero mais alguma coisa. Claro que quero, quero saber onde estão todos.

Quando ficava sozinho em casa por um motivo qualquer, o tempo demorava pra passar, A casa ficava só pra mim, mas não tinha graça, era como seu estivesse numa caverna ouvindo somente os meus passos – era triste.  Aproveitava o silêncio para inventar fantasmas.

Mesmo gostando dessa vida de eremita, gosto de ter companhia em minha casa de quando em quando. É preciso trocar energia, fazê-la fluir – energia acumulada pode se tornar numa bomba perigosa.

A moça sem nome, aquela que mora perto da praia, por passar um bom tempo no computador, acabou criando, para ela, um mundo tecnológico e frio.  Não entendo pessoas que não se aceitam; que não conseguem levar numa boa os seus problemas e defeitos. Qual a vantagem de fingir ser outra pessoa? Roubar o nome da irmã e viver numa ilusão vinte e quatro horas do dia?  Ela sabe que precisa de tratamento. Eu tentei ajudá-la, mas ela recusou a minha ajuda.  Qualquer hora ela explodirá – eu sei.

Acho que estou misturando os temas.

Mas era sempre assim quando me via sozinho, viajava em paisagens distintas. Ora tudo estava cinza, ora tudo se transformava num colorido forte e intenso. Como faço agora neste texto sem pé nem cabeça, mas que me distrai e me recupera de momentos vividos.

Os amigos estão chegando...

Vou parar por aqui, senão vão descobrir que eu escrevo e que tenho essa vida paralela.

Fazer o quê? Cada um tem o seu segredo. Não é mesmo?




Paulo Francisco

Passagem





Tirei o edredom do varal e levei a esperança pro meu quarto.  Sim, de quando em vez a esperança entra em minha casa e canta para me acordar. Era uma esperança pequena, nasceu com certeza nesta primavera. Deixei-a livre, pousada no tecido florido. Não expulso nada que em mim habita - deixo fluir.  Como eu poderia, por exemplo, expulsá-la, se tenho na minha pele a marca da sua existência?

Ela ficou parada por um bom tempo no edredom dobrado. Mas quando dei por mim, a visitante já tinha ido. Na maioria das vezes abria os meus olhos e já não as encontrava mais ao meu lado.  Voavam certamente para outras paragens, pois por aqui, nunca foi somente mar de rosas, tem sempre algo para ser dobrado com certeza.

Dobrar e ser dobrado. Não sou tão difícil de ser dobrado, principalmente quando a esperança está pousada em mim.  Ela não me entendeu quando disse que não queria ficar preso a nada e que as minhas asas estavam sempre esticadas na horizontal e nas alturas.  Criou-se naquele momento uma desesperança em seu coração.  Pra muitos, se o coração não está preso, está despedaçado. A esperança voou para outra paisagem certamente.  Eu sei que faz parte da vida as chegadas e partidas.

A vida é de idas e de vindas. As borboletas coloridas, por exemplo, que visitam a minha varanda todas as manhãs à procura de néctar, se decepcionam quando se deparam com as flores de plástico e a água açucarada em frasquinhos decorativos, mas não aprendem e estão sempre voltando.  Possivelmente na esperança de um dia encontrar um vaso com flores verdadeiras. Outros que estão sempre por aqui à noite são os besouros e as mariposas em busca de luminosidade. Contrários dos predadores noturnos que basta uma lua pra vida ser doce, eles não gostam da escuridão.

Pensando bem, eu também não gosto da escuridão. Eu gosto da noite, da poesia que ela me recita, da possibilidade que ela me dá em imaginação e som. É... gosto da noite iluminada pelos olhos da lua, das madrugadas  que dançam ao som do vento, gosto de olhar pelo buraco da noite as silhuetas das montanhas e árvores que me cercam e me fascinam.


Nos meus passeios noturnos sempre tenho a companhia da dama da noite e a esperança pousada em mim.


Paulo Francisco

Recomeço



Voltei! Neste movimento elíptico sou um errante. Ando em círculos bêbados. Não sei andar em paralelas estreitas. Volto pra casa sempre atordoado querendo paz. Já não gosto da zonzeira etílica. Já não sei sonhar em almofadas de bali - já não quero mais. Volto ao passado criado em fumaças esverdeadas. Volto em pontos aproximados. Não tenho marco. Sou trapo remendado. Sou colcha de retalhos. Sou peça que encaixa em caixas de madeira. Sou infância imperfeita. Sou o espaço entre o violino e o piano. Sou a voz de um coral de todos os cantos.

Voltei ! Para a imprecisão retida. Para o centro da vida.

Voltei para o recomeço

Voltei para o imperfeito

Voltei em movimentos elípticos

Vago em pensamentos errantes

Volto pra terras flutuantes

Aqui eu tenho paz.




Paulo Francisco

Pra dizer adeus




Vem nem que seja só pra dizer adeus. A cantora num duo cantava melancolicamente a canção. Fiquei com a frase em minha cabeça e, cada vez que pensava nela, meu coração disparava. Fiquei perdidamente entristecido na possibilidade de um dia isto acontecer comigo. Aço só o super-homem, eu sou feito de células, tecidos e órgãos vitais – sou um eucarionte. Meus sistemas se interligam. Meu coração pulsa e jorra vida e, sem ele não sou nada. No meu peito não tem um esse de super, tem todo alfabeto que represente o amor que tenho por ela. Sou de carne e alma. Sou humano e como tal, sou um possível sofredor de amor.

Não, não venha pra me dizer adeus. Venha pra me fazer um aconchego, me colocar em seu colo e me mimar de afetos. Venha, venha sim, me fortalecer com seus carinhos e cheiros.

Aceitar um adeus quando ainda se ama é fatal. Morre-se numa sessão de tortura chinesa – é palito de bambu na unha. Descobre-se que o castelo era de areia e o calor que te aquecia agora te queima como gelo.

Venha nem que seja só pra dizer adeus. E eles disseram adeus. A canção não saía de minha cabeça.

É certo que numa relação fragilizada a possibilidade de um adeus é forte. Basta a indecisão de um dos pares. Numa dupla a sincronia é vital. Não existe a batalha do eu sozinho.

E este amor tão frágil precisa fortalecer-se pra que não haja adeus.

Trago em meu peito o seu nome, não sou eu quem vai dizer adeus.

Trago em meu peito a certeza de você, não sou eu quem vai dizer adeus.

E a musica não acabava... Repetia-se em minha cabeça, deixando-me mais inseguro que aquele amor. Amor de papel, com pouca base; amor ainda em construção; amor em gema que não se transformou ainda em botão. Como florir?

E no final da canção o silêncio se instaurou em mim. Mas como eu já dissera, tenho alma. Corri para o telefone e disse com todas as letras: ¨ Te amo.¨

Ela não atendeu para me dizer adeus. Ela não me disse adeus. Simplesmente sorriu. Sorrimos juntos até a próxima canção.


Paulo Francisco