O presente

A menina queria um cão, mas acabou ganhando um Hamster. Não ficou triste, mas também não ficou contente. Ficou silenciosa, reticente. Sua mãe, não aguentando a atitude da filha, foi logo perguntando: ¨Filha, você não gostou de seu presente?¨ A menina, sem titubear, responde: ¨Esta pergunta você deveria fazer a ele e não a mim.¨ A mãe, admirada, com a resposta da menininha diz: ¨Por quê? E a menina responde de imediato: ¨ Ora, quem ganhou uma casa nova, com roda gigante, escorrega, tubo para correr e uma menina como empregada para limpar suas bagunças?¨
A mãe, sem fazer nenhum comentário, sai correndo para o quarto e com o lençol da cama em sua boca se arrebenta de tanto rir.
No dia seguinte, um Chihuahua bateu-lhe à porta.


Paulo Francisco

Cavalheiro

Lembro a ti: Tenho alma e sei sentir. Em meus cortes o vermelho sangue se esvai. Sou temente a Deus. Juro! Cumpro a lei do amor. Não quero ser um pecador. Não sei fazer tocaia. Sou um livre pensador. Tenho em mim o desejo e só te quero bem. Não crio imagens falsas, sou escravo de meus anseios. Sou uma peça da natureza. E se não tenho beleza, sobra nobreza em meu coração.


Paulo Francisco

Fuso horário





Acordei no meio do meu sono.
Não, não era de madrugada.
Era meio dia.


 Paulo Francisco

Presença





Na prosa da moça, faltou a flor; faltou a cor; faltou a brisa; faltou o mar; faltou tudo. Bem...faltou quase tudo. Porque nela, na prosa, tinha ele pra namorar.



Paulo Francisco

Mulheres




O nome dela eu nunca soube de verdade. Sempre a conheci pelo seu nome de guerra. Gostava da puta da esquina que mexia comigo todos os dias quando chegava de madrugada em casa. Chamava de casa, um atelier que uma das amigas de minha mãe me emprestara, quando tive que sair da casa de meus pais. Naquela época só a amiga de minha mãe e a puta da esquina me entendiam. A amiga de minha mãe morreu. A puta eu não sei. Talvez tenha morrido também. Mas as duas ainda vivem comigo.


 Paulo Francisco

Falta




Na prosa da moça, tinha flor; tinha cor; tinha dor; tinha vento; tinha mar; tinha tudo. Bem... quase tudo , porque ainda não tinha ele pra amar.

Paulo Francisco

Aparência

Ontem fui à cidade vizinha. Olhando de fora, parece ser a cidade mais tranquila do mundo, mas sei que não é bem assim. Lá, ainda hoje, impera o coronelismo. A lei do mais forte. Por isso aquele ar quase bucólico. Quem tem coragem de gritar ao mundo? Ontem eu visitei a cidade mais melancólica deste Estado. Cidade regida por egos e falcatruas.


Paulo Francisco

Despertador

Todas as manhãs os pássaros (principalmente as maritacas) lembram-me de que tenho que dormir. Todas as manhãs, exatamente às cinco, nenhum minuto a mais ou a menos, o padeiro e suas portas barulhentas lembram os pássaros que está na hora de acordar. Agora, quem lembra o padeiro que está na hora de abrir o estabelecimento? Será a fornada quentinha e cheirosa da hora?


Paulo Francisco

Amarelo

Amareleceu. O sol invadiu o quarto transformando todas as cores existentes em amarelo ouro. Que belo, Sua Majestade invasora de mim! Permaneço parado – corpo e alma, alimentados pela luz da manhã. Assisto ao caminhar da claridade, deixando-a atingir-me suave e lentamente. Ilumina o meu corpo nu e cuidadosamente, aquece a epiderme exposta àquele ambiente que há pouco era penumbra, era cinza. Corpo totalmente tomado pela cor do rei. Permaneço imóvel. Cansado de mim, retira-se como chegou – suave e lentamente - deixando na pele o calor absorvido. Amareleceu e lá fora um céu azulindo.
Bom dia!

Paulo Francisco

Leitura

Ultimamente estou Galeano muito. Galeio em qualquer lugar: na esquina, no bar, na fila do banco. Hoje soltei uma gargalhada no meio da sala de espera de uma clínica. Todos olharam para as minhas mãos querendo saber de quem era o livro que me fazia tão bem. Não me intimidei, voltei a lê-lo colado à cara. Gosto de compartilhar e deixei que todos lessem: Eduardo Galeano.

Paulo Francisco

Play list

Quando ouço Cássia Eller, sinto-me feliz. Ela tem este poder de me deixar leve. Gosto desses cantores que já se foram como:  o Cazuza, a Elis, o Tim, o  Simonal. Acho que os cantores têm contrato com Deus - de ficarem vivos mesmo após a morte.
E não é que eles ficam melhores a cada dia.

Paulo Francisco

Separação

Deixo pra ti as boas lembranças. As más ficam comigo. Prefiro assim. Uma maneira de tentar limpar os canais coronarianos. Afinal não é todo dia que encontramos um coração duro.  O meu, que é vagabundo, bate em sístole e diástole: amor para amar, amar por amor. Coração verdadeiramente vagabundo que corre na estrada da vida à procura de outro vagabundo, mas que seja verdadeiro e não esquálido.


Paulo Francisco

Premonição

Sonhei que estava viajando pra conhecê-la. Quando acordei, lá estava ela me olhando. Perguntei-lhe o que houve. Ela respondeu: ¨Sonhei que você estava partindo¨.


Paulo Francisco

Engano


Na certeza do outrem, achou que podia. Enforcou-se com a própria corda. Morreu de raiva, morreu de vontade, quando já era tarde.


 Paulo Francisco

Erro


Toda Praça tem um dono. Na Praça da Matriz, o dono era um louco que gritava:
- O mundo vai acabar no ano 2000! Fazia as contas e pensava: "tudo bem, já serei velho mesmo. O mundo não acabou. Já se passaram anos e eu não estou velho. Enganamo-nos os dois.


Paulo Francisco

Desespero

O medo era tão horripilante que ela deu um grito silencioso e desmaiou ao perceber sua própria sombra.


Paulo Francisco

Compaixão

Fiquei chateado em não ter atendido ao pedido do moleque. Ele me pediu dinheiro para comer. Menino forte, aparentando doze anos. Pensei: não é pra comer, deve ser pra outra coisa. Mas quando levantei para ir ao banheiro, lá estava ele, no fundo do restaurante, com a cara dentro do prato, comendo ferozmente. Uma alma melhor que a minha saciou a vontade do moleque. Ao levantar-me  pra ir embora, olhei para o senhor de alma melhor que a minha e agradeci. 
Ele não entendeu nada.

Paulo Francisco

Magia


Apanhou sua máquina e partiu para o parque. Fotografou a natureza. E nela, ela - a esperança.


Paulo Francisco

Enigma

Atrás da porta da casa tinha uma ferradura. Eu era pequeno e não entendia o porquê de tantos quadros de santos; tantos badulaques em seus pescoços e pulsos. Eu era inocentemente pequeno para entender. E ainda sou.

Paulo Francisco

Tema

Perguntei pro rapaz se a menina  que o estava chamando era sua namorada. Ele me respondeu tranquilamente: ¨Não, não é. Eu gosto de homens, mas já fiquei com ela. ¨ Respondi imediatamente: ¨ Compreendo ¨. Olhei pra a Claudia Lemos que estava sentada à minha frente e disse: ¨ Será que eu compreendo mesmo!? ¨  Pronto. Papo pra horas.


Paulo Francisco

Leveza

Molhou seus pés na água corrente que escoava pela rocha. Era o começo de um rio. Era o começo de um novo caminhar de pés descalços e limpos. Molhou seus pés e lavou a alma. De alma limpa, flutuou. Flutuou como pássaro; flutuou com desejos de menino. Quando posou, as suas asas se transformaram em braços.  Mas a alma continuou a voar.



Paulo Francisco

Manhã

Ele acordou com a campainha do telefone. Era engano. Tudo bem, o seu sonho também. Levantou, tomou um banho quente, vestiu-se  de camiseta branca, Jeans e sandália. Abriu a porta e foi recebido pelos raios amarelos do sol. Sorriu. Era realidade.

Paulo Francisco

Contrários

Na indecisão do tempo. Ela chorou e sorriu. Sol e chuva. Casamento de viúva.

Paulo Francisco

Decepção

Era o derradeiro. Seu grito ecoava pela casa. No assoalho de madeira, roupas espalhadas, como se fossem dermes arrancadas. Sua pele ferida, por um amor perdido, manchava-se de sangue que aos poucos se diluía no piso frio do boxe, esvaindo-se para o ralo.
Os soluços se confundiam com o barulho da água batendo em seu corpo encolhido naquele ambiente esfumaçado.
De alma lavada, bastava-lhe recolher os cacos espalhados pela casa. E assim o fez.
Num transe absoluto, permanece deitado entre ninho de lençóis.

[silêncio]

Era o derradeiro. Seu grito ecoou pela casa.

Paulo Francisco